lets dream my dear
Nos seus sonhos ainda era verão e ainda iam passear à beira rio e sentavam-se em bancos de jardins e almoçavam juntos e falavam e riam muito muito.
Nos seus sonhos ele continuava cheiroso, doce e dançava para ela se rir. A sua vida ainda era colorida e alegre quando fechava os olhos e se punha a sonhar.
Ele continuava a ama-la nos seus sonhos.
Mas ela acordava e continuava a ama-lo.
viagem
sabes que são promessas em vão
que nunca mais ia vestir aquele casaco dele, com o cheiro aos cigarros dele
que nunca mais ia pedir torradas com doce ao pequeno almoço porque era o que ele sempre fazia para ela
que nunca mais ia olhar-se ao espelho e desejar muito muito que ele estivesse atrás dela
que nunca mais
porque ele tinha ido embora, porque ele tinha fugido
mas ela viu-o no comboio e caiu no chão porque as pernas tremeram muito e não aguentaram
e então ela levantou-se e disse que nunca mais ia andar de comboio.
annie
vim para Portugal porque deixei na minha cidade natal o amor da minha vida
ele morreu, eu tenho muitos anos e ele tinha ainda mais que eu, ambos tinhamos muitos anos de amor.
ele morreu no dia em que deixou de ser a mesma pessoa
vinha para casa e já não me trazia flores como sempre trazia
não me procurava para me beijar
não se aquecia na cama com um abraço meu
não me pedia para lhe apertar a gravata
até que eu chorei muito porque tinha saudades de tudo aquilo que ele já não fazia
e então lembrei-me que um dia ele disse que eu era livre, que tinha tudo para fazer o que quisesse
e lembrei-me que ele disse que nunca mais ia amar ninguém como me amava a mim
então eu decidi vir embora porque não podia viver mais ali, com ele morto, ou seja, sem ele
então eu vim para Portugal, agora espero que ele me procure e me encontre
mas eu sei que ele não o vai fazer, mas enquanto estou aqui, o tempo passa e eu vejo paisagens lindas, e qualquer dia morro eu.
why?
If you do, why the fuck are you looking at me?"
dr.
queria escrever durante o dia e fazer amor à noite no chão no meio das telas frescas, no estúdio do marido.
ela queria que ele fosse amigo dela e lhe pintasse nas costas os seus poemas preferidos.
ela queria que ele respirasse arte e lhe abraçasse com força. ela queria ser amiga dele para a vida. ele queria-a.
ela queria ser poeta e encher as lágrimas de tinta azul para sujar as mãos que levava à cara nos momentos de angústia.
ela queria tanto, mas ele seguiu medicina e esqueceu as pinturas.
é muito bom existir ao teu lado
o amor doente
mas é claro que ela mexeu onde não devia mexer e ele tocou nela. o papel a avisar do grande estrago caiu e durante algum tempo as duas pessoas pareciam menos avariadas. riam muito uma com a outra, estavam juntas e só estavam bem quando estavam juntas, riam muito uma da outra e falavam muito.
mas é claro que o tempo sem avarias acabou. depressa várias peças do corpo cairam com o tempo, as palavras secaram das suas bocas e já não se riam tanto. e depois as duas pessoas lembravam-se das suas deficiencias e ficavam tristes por saberem que ainda não estavam curadas. não foi tempo perdido, foi tempo que ainda veio estragar mais as duas pessoas.
estragou mais, porque agora tinham a caixinha de dentro do peito dorida. magoada. doía só de pensar nas avarias, doía só de olhar para pessoas avariadas e então deixaram de se falar e o tempo passou. agora é verão e ele vai à praia com ou sem avaria e ela vai ver a amiga tocar violino e quer aprender a tocar piano, mas para já fica em casa a ouvir música.
95
o telefone novo é portátil e tem a memória cheia. não cheguei a gravar o teu número, e ainda bem.
perdi a minha-tua caixa nas mudanças. nela continha bilhetes de cinema e senhas de autocarro de quando passeamos juntos. mas perdi a caixa, e ainda bem.
esqueci-me de como se fazia a sopa de que tanto gostavas. tento faze-la mas falta sempre qualquer ingrediente porque já não sabe como dantes. esqueci-me de como se fazia, e ainda bem.
a mobilia do quarto é nova, a cama chia, e ainda bem.
a cadeira que estava na varanda, onde te sentavas a fumar, ficou podre com a chuva de inverno, foi para o lixo, e ainda bem.
a minha morada não é agora a mesma, das minhas novas janelas já não se vê o mar onde nadavas ao fim de semana, e ainda bem.
ela a imaginar
boa noite
Vai para a cama. Ouve música mas os ouvidos estão cansados, desliga o rádio. Tenta ler e lê, duas páginas e fecha o livro.
Há um lado positivo nesta inércia e neste tédio todo. Acaba por adormecer rápido e o dia acaba e outro começa logo. E como tem facilidade em dormir não pensa em assuntos que lhe apertam o coração e desgastam a alma.
Boa noite.
partir ou ficar
São demasiadas raízes que me prendem aqui, a esta casa, a esta família, a este ar. Mas são também muitas as saudades que me puxam para essas terras. Que me fazem querer voltar a essas terras, terras molhadas da chuva de inverno, terras molhadas com pegadas dos nossos passeios ao final da tarde.
A verdade é que tenho saudades dos tempos que aí passei, dos chás que aí bebi, contigo, sozinha, na esplanada, na varanda com uma manta nas pernas, tenho saudades dos cigarros que fumei sem saberes, da inspiração que tinha para escrever coisas decentes, poesia coesa e bonita, sim bonita, saudades do teu sofá áspero, nada confortável e já velho, saudades do teu casaco que tantas vezes vesti porque nem as minhas cinco camisolas faziam frente ao frio. A verdade é que tenho saudades e ponto.
Partir ou ficar? Eis a questão. Posso guiar até aí e esperar que me abras a porta e dizer-te olá e fingir que não aconteceu nada, que não fugi daí. Posso apenas ficar aqui e chorar a tristeza do adeus. Eu não sei sequer o que fazer. Talvez porque não deveria ter fugido e agora a vergonha é muita para te encarar outra vez. Talvez porque tenho medo do que me irias dizer. Mas a verdade é que neste momento te escrevo do meu quarto da minha casa de infância e me apercebo que por muito que me custe tenho que tomar uma decisão. E a minha decisão é ficar. Eu vou ficar aqui. Não vou fazer nada, e vai haver muitas pessoas a insultar-me porque não fiz nada nem vou fazer, mas é o melhor para mim, para ti. Talvez o melhor seja mesmo procurar alguém com um coração limpo, alguém disponível para me aturar e que não me faça fugir. Já sabes que o que vivi aí, fica aí.
Se ao menos pudesse despedir-me de ti e ter a certeza que ias rasgar esta carta e correr para mim. Se ao menos soubesse que é tudo mais fácil e não existem estas tretas que me complicam a cabeça. Se ao menos conseguisse agarrar aquele tempo que passamos juntos e pará-lo e guardá-lo. Se ao menos pudesse cantar “adeus, não afastes os teus olhos dos meus”.
Adeus.
o caminho
Há um caminho que percorro todos os dias depois de horas seguidas com dores no peito. Tudo cá dentro está muito apertado, olho para ti e ai que dor, desvio a cara para não sentir que a vida passou por ti e que a vida em mim vai em câmara lenta. O peito, o coração dói-me muito, quer dizer que estás a abandonar-me? Sim. Que bom.
Há um caminho que percorro depois da agonia que sinto todas as manhãs, e é um caminho doce, com música nos ouvidos, pés a equilibrarem-se no passeio fino à margem da rua e mãos caídas que sentem o vento a fugir pelos dedos como tu me fugiste pelos dedos como eu te vou largando com o vento.
O ponto alto do meu dia é quando o peito deixa de me doer, é quando caminho, às vezes pelo percurso mais longo, e me sinto leve.
rip
Quase sempre me descalço e enfio nos pés as minhas meias mais quentes, amarro o cabelo, visto o meu casaco velho e roto e sento-me à janela
E é aí que observo o lado de fora, o exterior, que ainda há pouco tempo abandonei
Da minha janela vejo coisas que não costumo ver quando passeio, vejo o vento a brincar com as arvores, os pássaros a picar a terra, as abelhas a voar contra o vidro, o céu a escurecer, tu a ires-te embora,
A lançares um beijo com a mão. tu a deixares-me para trás, pouco a pouco, cada vez mais
E eu daqui vejo tudo aquilo que não vejo quando passeio
Quando chego a casa
Quase sempre bebo um chá de camomila e como um pão com compota de amora doce
Quando chego a casa e por alguma razão fecho os olhos, são os teus que vejo
Eu olho os teus olhos e decoro-os, para quando chegar a casa e fechar os meus, ver os teus.
"Mysterious skin"
por momentos perdemo-nos no caminho
tentamos comprar um certo conforto que precisavamos na pessoa errada
devíamos ter procurado melhor ou deixavamo-nos estar na podridão sozinhos
fomos apodrecer um no outro e deixar marcas um no outro quando nem era preciso
quando isto só veio estragar o caminho outrora traçado
por momentos perdemos o rasto do caminho
mas depressa o encontramos
dei por mim a cantar isto
P'ra doer aonde? P'ra ser o quê?
Achas que ninguém vê?
E p'ra quê fingir?
Porquê mentir e remar na dor?
Achas que ninguém vê?
desculpa
uma dor de cada vez
finge comigo
Podia fingir que nunca me disseste nada, que nunca me fizeste nada nem tencionaste tal coisa.
E tu podias, pelo menos, fingir que acreditas no que digo.
Era tudo bem mais fácil.
Podíamos fingir que não há esperanças, nem dor, nem pranto.
Ou então, fingir que acreditamos que está tudo bem, que apesar do que dissemos um ao outro, esteve sempre tudo bem.
Fingir que não há arrependimentos, nem incertezas.
Uma vida fingida é bem mais fácil.
vai doer pouco
...contar histórias
mas ela não namorava ninguém
ela namorava o vento, as gotas da chuva, o jardim quase morto,
namorava as vozes que vinham de longe, o céu sempre carregado demais,
as nuvens negras, as árvores despidas, as flores que pareciam nascer sem vontade (devagar)
a sua própria ausência de vontade de namorar alguém
que lhe pedisse para...
queria um chá por favor
para arranjar um motivo. para.
tens lume? perguntei-te.
sim. disseste. levaste as mãos ao bolso.
engatilhaste o zippo. todo prateado.
abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
eras canhoto, como o coração.
agora, disseste.
e levei o cigarro até à chama.
já está. e sorriste.
importas-te que te acompanhe? perguntaste.
não, claro que não. claro que não.
está frio. disseste. e esfregaste as mãos.
o cigarro sempre aquece.
sim. tossi.
estás bem? perguntaste.
estou muito bem.
óptimo. disseste. e sorriste.
aquele café além é acolhedor. não tomas nada?
um chá fazia bem à tosse. perguntaste. e disseste.
sim, um chá calhava bem. estava mesmo a apetecer-me.
parece que adivinhei. disseste. e aí sorri eu.
tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
que correram mal, imediatamente mal.
comecei a fumar para te pedir lume.
para passar o frio.
descobri que não viria a morrer
nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. para sempre.
Ana Salomé